sábado, 13 de fevereiro de 2010

"Commercio da Louzã" - A República na ponta da caneta

Reproduzimos artigo publicado no quinzenário "Jornal da Lousã",anunciando o lançamento do livro.

MAS PODERÁ A IDEIA SER FUZILADA
OU ENCERRADA NUMA PRISÃO?

"Commercio da Louzã"
A República na ponta da caneta

No próximo dia 5 de Outubro, pelas 11h 30, proceder-se-á à cerimónia pública de apresentação do livro "Commercio da Louzã — 500 dias até à República", uma edição da Escola Profissional da Lousã. Dos objectivos desta obra — que integra o Projecto "Lousã em Datas" e tem o apoio da Câmara Municipal da Lousã, Biblioteca Municipal da Lousã e Delegação do Centro da Secretaria de Estado da Cultura —, já démos conta na edição anterior.
Deixamo-vos hoje alguns excertos do livro da autoria de Dinis Manuel Alves, jornalista e professor da EPL.
O livro está polvilhado de reproduções do "Commercio da Louzã", um convite a uma leitura mais alargada deste jornal, que poderá ser feita por todos na Biblioteca Municipal. Ali se encontram, aliás, colecções de outros periódicos lousanenses que justificarão o interesse dos leitores, para melhor conhecerem factos e costumes dos tempos de antanho do nosso concelho.

CACIQUES — "Lá estivemos no domingo a apreciar alguns bocaditos da legalidade com que são feitas as eleições cá pelo burgo.
A meza foi constituida ás 9 horas e 15 minutos; sendo lido pelos diversos influentes monarchicos os alfarrabios que deviam regular o acto eleitoral, accordaram em serem distribuidos á bocca da urna, as listas aos eleitores, que as recebiam fechadas e, sem verem o que continham, as passavam á mão do presidente que as lançava d'entro da urna, que havia de acusar o resultado final da eleição.
De maneira que os chefes, rodeados de grande quantidade de janizaros, lá estavam na faina do costume, de dizer aos eleitores:— este é meu, este é meu; e depois do eleitor resolver de quem era, lá recebia a lista na mão direita e na esquerda a senhasinha para o bacalhau albardado e respectiva murrassa com que regar o dito".

COMETA — A astronomia desta feita chamada a página para explicar ao António Russo, ao João do Oiteiro, ao Joaquim Coxo, leia-se ao "zé povo", que a passagem próxima de um cometa não significaria o fim do mundo. No final da charla, Manuel Caseiro pôde ir dormir mais descansado:
"Olhe, sr. Antonio, fez bem em nos fallar assim, porque nós, eu cá por mim pelo menos, embora não quizesse lá muito crer nisso, em todo o caso andava ainda assim com o meu cagasso…"

FESTA — As melhores famílias da terra esqueceram, na passagem do ano, as turbações da política lusa, e cumpriram animado réveillon:
"Soiree — Como noticiámos, teve logar na nova casa do Club Louzanense, na ultima noite do anno uma brilhante soiree em que se reuniram as principaes familias da Louzã.
Dizem-nos, que a principio o baile correu com animação, mas que depois da meia noite a maior parte dos cavalheiros sahiram da casa do baile para a sala de jogo do mesmo club.
No entanto, de domingo para a segunda, lá se tornou a realisar outro baile que durou até de manhã.
Que lhes preste".

FOME — "Em conclusão: A Fome com todo o seu cortejo lugubre de misérias já penetrou em muitos lares onde os abastados e felizões nem de leve põem a sua ideia. Mas não importa porque o egoismo feroz de que estão possuidos não lhes dá azo a pensarem nos seus irmãos famintos, para só pensarem nas suas respeitáveis barrigas sempre em constantes e difficeis funções digestivas".

INSTRUÇÃO — A 1 de Agosto, a "instrucção" na Lousã ficava bem classificada, fosse no sector das crianças, fosse no dos mais crescidos, agora despertos e com condições de aprender as letras que seus pais não puderam mandar que lhas ensinassem…
"Na segunda feira teve logar na escola Conde Ferreira desta villa a conclusão dos exames do 1º grau deste concelho, que decorreram da seguinte forma:
Felismina Serrano Correia, optima
Laura da Conceição Baeta Pires Serra, optima
Antonio Henriques dos Santos, optimo
Ignacio Antonio Lopes, optimo.
Ás duas meninas, que foram habilitadas pela professora particular a exma. srª D. Elisa Augusta de Sá os nossos parabens.
Aos srs. Antonio Henriques e Ignacio Lopes que, attendendo ao enorme sacrificio que fazem para aprender agora o que seus paes lhe não poderam mandar ensinar, as nossas sinceras felicitações.
Estes dois cavalheiros foram leccionados pelo sr. Francisco Pereira Correia de Seixas que, diga-se em abono da verdade, é o professor a quem a Instrução mais serviços deve na Louzã porque foi elle quem acabou aqui com o privilegio de só aos ricos ser permittido saber ler…"

Em tom de poderosa mordacidade, anunciava-se programa que tornasse a monarquia indemne aos efeitos "perniciosos" da instrução:
"Artigo 1º — Fazer leis aparatosas para atirar ás bochechas do mundo civilisado e mostrar que cá tambem se pesca da regedoria.
Artº 2º — Conservar ás espeluncas o nome de escolas, para que lá fora, quem ouvir fallar em taes nomes julgue que se trata de edeficios apropriados, embora, não passem de cubiculos infectos.
Artº 3º — Continuar a fingir que o ensino é obrigatorio.
Artº 4º — Obrigar os professores a abdicar dos seus direitos civicos e perseguir a proposito de tudo o que tem o arrojo de pôr gravata vermelha.
Artº 5º — Continuar a pagar aos professores primarios o sufficiente para morrerem de fome afim de que elles descoroçoem e abandonem tal modo de vida ficando-se depois a viver uma nova vida de felicidade paradisiaca".
Resumindo o pensamento do autor do artigo, assinado por "D.", a monarquia gostaria de ver os cemitérios pejados de mestres-escola!

INTRIGAS — A 30 de Julho de 1910, Júlio Ribeiro dos Santos denunciava com vigor amargurado intrigas de que era alvo:
"Existe aqui, como aliàs em todos os pequenos burgos, uma corte que estupidamente se compraz em malsinar, estropiar e confundir ideias, factos e pessoas, quando porventura divirjam ou discordem daquillo que em seus atrophiados bestuntos permanece, inoculado e inspirado nos felizes momentos de attenção que os seus mentores lhe dispensam".
"É ver como essa tropa estraga e inutilisa iniciativas, deturpa intenções, ocasiona o estacionamento e até mesmo o retrocesso de tudo o que não seja da sua lavra, que se caracterisa por tresandar a bolorento e archaico" — continuava Ribeiro dos Santos, triste por tais procedimentos de gente da terra amada, mas as fronteiras de um Homem não se limitavam já ao torrão que o vira nascer…

JORNAIS DEVOLVIDOS — Por mais imparcialidade tentada na descrição dos factos ocorridos a 11 de Julho, a verdade é que houve assinantes que reagiram mal. Alguns marcaram o seu protesto devolvendo o "Commercio da Louzã":
"Com a exposição que fizemos dos acontecimentos de 11 do corrente, foram-nos devolvidos 9 jornaes.
Achamos pouco, attendendo á má vontade com que foi recebido o nosso primeiro numero.
Para demonstrarmos o que ha de verdade a este respeito basta dizer se que apenas o escrivão do 1º officio nos tem dado para publicar os annuncios do seu cartorio".

O REI — A passagem do Rei D. Manuel pela Lousã não ocupava mais de sete linhas! O motivo de tal sovinice em texto explicava-se na própria notícia:
"Na quinta feira, ás 7 horas da manhã, passou nesta villa, em automovel, com direcção á estrada de Góes, El Rei D. Manuel.
Acompanhavam-no duas senhoras que não poderam ser reconhecidas pela velocidade com que o auto aqui passou!"

POBRES — "É do 'Louzanense' de 1905 o nosso primeiro artigo, que, pela sua doutrina e pelo pouco que se tem feito, do que reclama em favor do operario, nunca é demais repeti-lo e propaga-lo entre as camadas sociaes, até que alguma coisa se faça em favor d'aquelle que gasta a maior parte da sua existencia em proveito do abastado, que olha para elle, depois de gasto, como quem olha para uma machina, já sem concerto, que se atira para o monturo das coisas inuteis".

POLÍTICA — "Duas coisas me moveram a acceitar o vosso amavel convite de collaboração: a minha amizade por vós (…) e eu saber que o vosso jornal não tinha política, senhora com quem não tenho relações, mas que me parece pessoa detestavel, pelos males que lhe tenho visto causar e pelas patifarias e injustiças que lhe tenho visto praticar.
E então numa terra pequena?!
Ella mette-se em casa dos grandes, d'olho manhoso e sorriso matreiro, ouve o que os patrões dizem e vai contal-o aos criados; vai até á cosinha cheirar as panellas e provar os guizados, ouve os criados dizer mal dos patrões, ajuda-os nisso se fôr preciso e vai para a sala dizer tudo quanto ouviu, se é que não accrescenta alguma coisa da sua lavra (…)". João Ninguém

RELIGIÃO — Elogio ao pároco chamado a pregar o sermão à chegada de Nossa Senhora da Piedade. Um elogio que mostrava já, de forma clara, para que lado pendiam as simpatias do jornal lousanense:
"O sr. padre José Amaro, com o seu discurso fluente e correcto, historico-socialista, conseguiu, em parte, agradar immenso ao selecto auditorio. Os nossos parabens".

"Discurso sensacional — Um padre defendendo a Liberdade" — assim se chamava o apetite dos leitores para a primeira das prosas: "Desse discurso, que produziu magnifica impressão no auditorio, extrahimos os seguintes periodos que constituem uma soberba saudação á Liberdade — 'a noiva eterna das almas juvenis, o ideal sublime por que combatem todos'".
Vinha depois o discurso do pároco de Vila Secca, com direito a chamada igualmente panegírica:
"N'uma brilhante conferencia, ha dias realisada em Santarem, o sr. dr. Antonio Augusto, parocho de Villa Secca, diz que o catolicismo e democracia não são inimigos, antes o bom catholico deve auxiliar a propaganda republicana".

TACHOS — Da Lousã faltaria assunto político para tratar, daí o predomínio das crónicas, também dos artigos importados doutras publicações.
O "sr. Antonio" continuava postado junto à sua pedagógica lareira, ensinando o povo que assumia hoje os nomes de Francisco Caseiro, João da Rosa, Joaquim da Peneda:
"Ó sr. Antonio, começou o Francisco Caseiro, tenho ouvido dizer que ha lá por Lisboa menino que tem dois tres e mais empregos, que de todos ganha e que a maior parte das vezes não faz nada! Será verdade?
— É verdade e mais que verdade, respondeu o sr. Antonio. Disse vocemecê, sr. Francisco, dois e tres empregos. ha menino que abicha cinco e seis! Olhe não vamos mais longe: o ministro do reino, que agora está no Poder, tem a bagatella de seis empregos e ainda anda para apanhar mais um.
— Ena pai, exclamou o Joaquim da Peneda.
— Então, disse o sr. João da Rosa, se tem seis empregos é para cada dia da semana seu, e pelo visto ainda quer outro para domingo (…)".

TROPA PARA QUE TE QUERO — O recenseamento dos mancebos já se fizera, mas alguns preferiram não responder à chamada ao quartel:
"Na comarca da Louzã, cartorio do segundo officio correm editos de 60 dias, a contar do segundo annuncio, citando o mancebo refractario Manuel Ferreira, filho de António Ferreira e de Biatriz de Jesus, do logar do Freixo, para nos 10 dias subsequentes, pagar reis 225$000 como dispõe o artº 173 do decreto de 24 de Dezembro de 1901, ou nomear bens á penhora na execução que lhe move o Ministério Público".

TUMULTOS — O comício republicano de 11 de Julho de 1909 não haveria de decorrer na "ordem" desejada. Os sub-títulos da manchete da edição de 16 de Julho eram bem sinal disso mesmo:
"Chegada dos excursionistas — A contra-manifestação — Apedrejamento á casa do sr. Padilha onde se realisou o comicio e aos comboios que conduziam para Coimbra os excursionistas — Tiros — Arrombamento pela madrugada do dia seguinte 12 do corrente — Outras noticias".
"… Um desordenado berreiro de vivas á Monarchia, sendo a ultima palavra d'esta phrase, pronunciada pela maior parte d'essa pobre gente, sem a primeira syllaba, dando assim a ideia nitida da consciencia de quem levantava os vivas á Monarchia" — lia-se no jornal lousanense.
Aquando da primeira salva de palmas ao orador, "o nosso illustre conterraneo e talentoso advogado Dr. Fernandes Costa (…) de cá de fora apedrejavam as janellas, partindo muitos vidros, disparando-se alguns tiros de rewolver".

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