terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Sobre o Projecto

Celebrando o Centenário da Implantação da República, vamos publicar, na íntegra, o conteúdo do livro "Commercio da Louzã — 500 dias até à República".
A folhear aqui.
O livro, da autoria de Dinis Manuel Alves foi editado pela Escola Profissional da Lousã (EPL), em parceria com a Câmara Municipal da Lousã (CML). BIBLIOTECA NACIONAL, Lisboa - CDU: 070(469.322)"1909/1910"

Publicaremos também, em endereço a indicar oportunamente, em formato pdf, as edições do jornal dadas à estampa no período analisado no livro - 4 de Abril de 1909 (n.º 1) a 14.10.1910 (n.º 62).

Outras iniciativas serão indicadas oportunamente.

"Commercio da Louzã" - B.I.

O jornal "Commercio da Louzã" começou a publicar-se a 4 de Abril de 1909, ano e meio antes da proclamação da República. Ao lançar o seu programa aos mares da crítica, anunciava-se arredio de partidários e partidos — "um jornal sem política", como antevia o colaborador "João Ninguém".
Mas a política foi tema que sempre esteve presente no periódico lousanense, neste longo prólogo da República que acompanhou. No seu programa, o t'arrenego à política talvez quisesse significar ausência de comprometimento declarado a um determinado partido. Mas os textos desmentem que o jornal evitasse o empenhamento político, no caso em defesa do ideal republicano.
Não se renegava a política, mas a "má política" da qual chegavam constantes ecos da capital e doutras paragens, através de abundantes citações e reproduções integrais de prosas de outros jornais em Lisboa, Aveiro ou Coimbra publicados.

Não se assumia oficialmente como republicano, apesar das confessadas "ideias republicanas dos seus directores"; mas o "Commercio da Louzã" fez cruzada pela chegada breve da "LUZ", que aqui significava o advento da República, por troca com um regime decrépito, que levara Portugal à condição de um "leão moribundo".

Páginas desfraldadas a favor da instrução popular, da aprendizagem da leitura a desaguar no leito sofrido dos pobres a quem os herdeiros da sorte e da fortuna desprezavam; páginas impressas com o vigor de quem clamava contra as injustiças do caciquismo local, do clero reaccionário e dos "camaristas" lousanenses que pareciam saber apenas da sua vidinha tratar.

Pela instrução popular, significava tomar partido contra um trono que assentava "sobre um pedestal chamado Ignorância", contra uma "monarquia nova" que esclerosava de velhos problemas.
Contra o clero conservador, porque sustentáculo de um trono agora com face de um "jeune roi" pelo jornal considerado incompetente, entre outros variados mimos.

Contra a Rotina, a Intolerância e a Escravidão, porque o contraponto dava pelo nome de Liberdade, Razão e Justiça.

Querendo apurar dominâncias ideológicas pelo texto dos sessenta e poucos números cumpridos até ao dealbar da República, diremos que o "Commercio da Louzã" se fez no berço do ideário socialista, uma "extrema esquerda liberal" que José Tengarrinha encontrou nos jornais portugueses que não eram declaradamente órgãos de partidos.

Um jornal que lutava contra os poderosos também para se manter de pé, que de quando em vez lá surgiam as referências à devolução de vários exemplares, ou à má vontade de quem, podendo, negava a publicidade que em tempos sobejara para os antecessores periódicos publicados na terra, um "rotativo" e outro "franquista".

Algumas notas históricas

O ANO DE 1909, que marca o início da publicação do "Commercio da Louzã", entrara com ministério da presidência do regenerador Campos Henriques, que tomara posse a 25 de Dezembro de 1908.
Segundo Damião Peres, o novo governo foi recebido como de reacção ao avanço da onda republicana, como um ministério de defesa monárquica.
A 2 de Fevereiro realizara-se a assembleia do partido regenerador, tendo faltado ao plenário alguns dos seus mais reputados "marechais".
A 10 de Fevereiro teve lugar, em Vila Viçosa, um encontro entre os reis de Portugal e de Espanha. Este encontro levantou grande celeuma nos arraiais republicanos, alentando certas esperanças em alguns sectores monárquicos.
A nova sessão legislativa anunciou-se, logo de entrada, tumultuosa. Uma proposta de lei do ministro Espregueira, para um empréstimo de quatro mil contos foi combatida com a maior violência.
As oposições tentaram conseguir a constituição de uma comissão parlamentar de inquérito. A maioria recusou-a. Rebentou o tumulto. Um deputado munido duma pá de bater bifes, foi despedaçando várias carteiras, enquanto os outros repetiam em grita: — Inquérito! Inquérito!".
Campos Henriques demite-se, sendo substituído por Sebastião Teles, em ministério de duração fugaz, cumprindo apenas 27 dias de governação. Estávamos a 11 de Abril de 1909, dia da publicação do segundo número do "Commercio da Louzã".
Henriques não aguentara quatro meses o cargo, e Teles teria mandato bastante mais curto: seria substituído a 14 de Maio, ainda o número sete do "Commercio da Louzã" não chegara às bancas…
Entretanto já se havia realizado o Congresso do Partido Republicano Português: em Setúbal, a 24 e 25 de Abril.
O governo era agora presidido pelo regenerador dissidente Venceslau de Lima. Substituíra o progressita Sebastião Teles a 14 de Maio, e haveria de manter-se no cargo até 22 de Dezembro.

O CONVÉNIO COM O TRANSVAAL perturbara bastante o periclitante ministério de Sebastião Teles. Damião Peres retrata assim a situação vivida entre Abril e Maio de 1909:
"Uma questão, levantada em volta dum convénio entre o Govêrno de Moçambique e o Transvaal àcêrca do fornecimento de mão de obra indígena para as minas do Rand, serviu para atribular a curta existência dêsse gabinete. O debate generalizou-se nas duas Câmaras com grande ruído. Na dos Pares, o Conde de Arnoso voltava a clamar por uma investigação rigorosa do regicídio.
À frente do Juízo de Instrução Criminal fôra colocado o magistrado de carreira, António Emílio de Almeida Azevedo, que intentava uma acção de certo vigor contra as sociedades secretas. Logo contra o Irmão Hoche (nome maçónico que o Juiz adoptara quando iniciado na Maçonaria) rompeu uma campanha acesa dos jornais de esquerda.
Não afrouxavam a propaganda nos quartéis nem as aliciações dos oficiais para a revolução republicana.
O govêrno Sebastião Teles, politicamente muito fraco, a-pesar de ter maioria de votos, não podia sustentar-se. Em vão apelou para a dissolução parlamentar. Teve, por isso, que demitir-se".

A APROXIMAÇÃO INEVITÁVEL DA REVOLUÇÃO começava a pressentir-se. José Luciano de Castro, em carta ao rei, prevenia:
"O partido republicano avança a passos rápidos. Já tomou posse da Câmara Municipal e de grande maioria das juntas de paróquia de Lisboa, e fez eleger há dias o presidente da Sociedade de Geografia, derrotando um dos ministros, e, no dia 2 do corrente, sob pretexto de afirmação de princípios liberais, promoveu uma imponentíssima e extraordinária manifestação republicana que terminou por uma sessão tumultuosa na Câmara dos Deputados, em que alguns deputados deram vivas à República correspondidos por calorosas manifestações das galerias, onde só estavam republicanos. Nesse movimento estavam confundidos republicanos e dissidentes". E mais adiante: "Se não me engano, a revolução ameaça-nos de perto…".
Júlio de Vilhena, pessoalmente, fazia ao monarca avisos idênticos.
Efectivamente, a revolução caminhava a passos largos. O almirante Cândido dos Reis desenvolvia na Marinha uma acção muito intensa, aliciando numerosos oficiais. O novo Juiz de Instrução Criminal ia apanhando várias malhas da organização secreta Carbonária. Mas, justamente, os perigos e as ameaças aceleravam a preparação revolucionária. Os chefes mal podiam já conter os conjurados.

AS PERSEGUIÇÕES À IMPRENSA haviam sido o pão nosso de cada edição, nos últimos anos:
"Começaram, em 22 de Maio de1907, a funcionar os gabinetes negros, instituídos pela lei contra a imprensa. Em Lisboa, logo foram promovidas centenas de querelas. E as suspensões choverão.
No dia 21 de Junho o governo publicou um decreto que proibia a circulação, exposição ou qualquer outra forma de publicidade dos escritos, desenhos ou impressos atentatórios da ordem pública. E nenhum periódico poderia publicar-se sem autorização prévia. Era extinguir a Imprensa!
Foi suspensa A Beira, por dois meses. Via-se bem, sem dúvida, que o nó vital da situação era a liquidação dos adiantamentos. No mesmo dia O Mundo e O País foram suspensos por trinta dias.
A maioria dos jornais é executada por sucessivas suspensões, jesuítica fórmula de supressão. França Borges, que se refugiara em Espanha, começa a publicar, em Badajoz, no dia 26, o Espectro do Mundo.
O Correio da Noite e o Popular, órgãos dos partidos rotativos, são suspensos a 20 de Novembro…".
Perseguições motivadas pelo apoio crescente dado pelos jornais ao movimento republicano:
"É de primeira importância a acção desenvolvida pelos jornais no capítulo da propaganda doutrinária da República" —lembra José Tengarrinha:
"Ao lado dos comícios públicos, era a Imprensa a tribuna mais incisiva e de mais profundo efeito, preparando os espíritos para o movimento que eclodiria vitoriosamente em 5 de Outubro. As forças reaccionárias têm consciência desse facto, e por isso, em fins de 1909, os padres, nas suas pregações, fazem propaganda dos jornais jesuíticos — a que chamam boa imprensa — e chegam a ameaçar de excomunhão os leitores dos outros jornais, especialmente os dos malvados republicanos".

Mas nem todos os jornais alinhavam declaradamente pelas cores republicanas. O "Commercio da Louzã", que no texto se escancarava republicano, nunca assumiu oficialmente a sua adesão à República, na vigência do regime monárquico, ao contrário do que haveria de suceder com o vizinho "O Poiarense", pouco tempo antes do 5 de Outubro.
A recusa de alinhamento partidário era comum nos programas de alguns jornais, já desde os finais da primeira metade do século XIX. Esta manifestação de independência em relação aos partidos era contrabalançada por outros casos, em que tal alinhamento se afirmava, logo nos primeiros números.
No primeiro caso — no qual encontramos semelhanças com o programa do jornal lousanense —, encontramos "O Azourrague", que iniciou a sua publicação em 1838. Na sua "Profissão de Fé", declara que "não tem cor política e não pertence a partidos, vibrando estocadas à direita e à esquerda apenas com o fito no bem do Povo".
Exemplo de alinhamento partidário logo à nascença, encontramo-lo em "O Republicano". No seu número 3, dizia:
"Proclamamos a liberdade, igualdade e fraternidade.
Queremos república, porque só ela nos pode salvar.
Queremos um governo de homens inteligentes e honrados.
Queremos recompensas para todos os que bem mereceram da pátria.
Queremos asilo para todos os pobres.
Queremos pão para todos os que têm fome.
Queremos dar instrução a todos os que a desejam.
Queremos que o trabalho seja recompensado.
Queremos, em suma, que não haja só uma classe que seja rica e feliz, enquanto todas as outras vivem na miséria".
José Tengarrinha nota aqui a tendência socializante que, como geralmente aconteceu, acompanhava o incipiente republicanismo na expressão das suas reivindicações sociais.
Mesmo sem nunca se ter declarado republicano, o tónus de grande parte dos artigos de cariz político insertos no "Commercio da Louzã" vão revelar esta tendência socializante, às vésperas da proclamação da República, tempo em que o ideal republicano já deveria estar, mas não estava, claramente definido.
À classificação de "republicanos", Tengarrinha prefere, para os casos dos jornais que se não afirmaram alinhados como tal, posicioná-los como "de extrema esquerda liberal".

O "Comercio da Louzã" passaria a "Jornal Républicano Democratico" a 19 de Abril de 1912, três anos e alguns dias volvidos sobre a edição inaugural. Cumpria-se então a edição 102, e a dupla consoante "m" havia já sido eliminada do nome.
Em nota de redacção bastante enxuta, o jornal justificava a mudança de atitude para assim se colocar ao lado do "unico senador democratico eleito por esta vila, dr. Pires de Carvalho":
"Justa homenagem — Ao tomar, este jornal, a orientação definitiva que deve guiar de futuro as suas colunas, não póde deixar de prestar, por este meio, homenagem ao unico senador democratico eleito por esta vila, dr. Pires de Carvalho.
Já por vêses aqui temos feito a justiça que lhe é devida, elogiando, sem favor, a atitude do defensor dos interesses louzanenses.
Por isso, não querendo repetir o que já antes dissémos, podemos afirmar que o Comercio da Louzã ao prestar homenagem, ainda que mesquinha mas sincera, ao distinto percursor dos ideais republicanos democraticos, se coloca inteiramente ao seu lado, pronto a entrar na brecha para defender, em tudo qunato fôr digno, principios creados pelo Povo, os unicos em que o Povo tem interferencia… os principios democraticos".
A fotografia do deputado ocupava quase metade da primeira página, que ainda reproduzia duas outras fotos, em tamanho bastante mais reduzido, de outros dois colaboradores e amigos do jornal.
Uma coluna era dedicada à passagem do terceiro aniversário do periódico, com duas notas de realce: a primeira, ao assumir-se que o jornal havia sido criado "para demonstrar que o seu proprietario possue na Louzã uma tipografia, capaz de satisfazer qualquer modesto trabalho, apezar de não o querem ver assim na Louzã algumas pessoas a quem o seu … patriotismo leva a fornecerem-se noutros estabelecimentos (…)"; na segunda, destaque para a denúncia de perseguições dos franquistas ao periódico:
"Não o compreendeu assim a seita franquista, que desde o seu primeiro numero, não tem havido chufas e intrigas (na sombra), que não tenham movido contra o Comercio da Louzã e o seu proprietario, chegando a prejudical-o materialmente".

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Projecto "Lousã em Datas"

Reproduzimos o press release difundido aquando do lançamento do livro.

"Exmo. Sr.
Chefe de Redacção

COM PEDIDO DE DIVULGAÇÃO

No próximo dia 5 de Outubro, pelas 11h 30m, no Auditório da Biblioteca Municipal da Lousã, vai proceder-se à cerimónia pública de apresentação do livro "Commercio da Louzã — 500 dias até à República".
Este livro, editado pela Escola Profissional da Lousã, integra-se no Projecto "Lousã em Datas", iniciativa que a EPL vem desenvolvendo de algum tempo a esta parte, e que tem contado com o apoio da Câmara Municipal da Lousã, Biblioteca Municipal da Lousã e Delegação do Centro da Secretaria de Estado da Cultura.

O livro que a Escola Profissional da Lousã agora dá à estampa, pretende-se homenagem aos jornalistas que fizeram o "Commercio da Louzã", e nomeadamente ao seu proprietário e director Júlio Ribeiro dos Santos.
Homenagem que quisémos de conteúdo útil, trazendo ao final do século páginas memoráveis de uma publicação do concelho da Lousã, quando o século mal despira as fraldas. Vale também como documento — pela reprodução de alguns dos textos publicados naquele periódico; como registo que interessa carregar até ao presente, como convite ao conhecimento, por parte das gerações mais jovens que estudam nesta escola, de uma experiência de jornalismo assaz diferente da que se vive hodiernamente.
Valerá ainda como convite à leitura dos jornais de antanho, fascinantes mananciais de relatos e registos narrativos de um jornalismo que assumia uma causa. A República como pretexto para uma evocação, porque nunca será demais exortarmos o sagrado valor da Liberdade, tão bem definida nas páginas do "Commercio da Louzã" como "a noiva eterna das almas juvenis, o ideal sublime por que combatem todos".

Convidamos V. Exa. a estar presente à cerimónia de apresentação acima referida, aproveitando o ensejo para lhe transmitirmos algumas notas sobre o livro "Commercio da Louzã — 500 dias até à República".

Lousã, 26 de Setembro de 1996

O Director da EPL

Mário Teixeira Ruivo, Dr.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Intervenção do autor (05.10.1996)

Intervenção de Dinis Manuel Alves, na sessão pública de apresentação da obra.

Sr. Director da EPL
Sr. Presidente da Câmara,
Dr. Fernando Vale
Exmas. Autoridades
Minhas senhoras e meus senhores

"Numa das suas edições, o jornal "Commercio da Louzã" dedicava um minúsculo quadradinho para publicidade paga. Alguém se havia esquecido de uma bengala num hotel da terra. O proprietário do hotel, homem generoso e bom, dera-se ao cuidado de anunciar que tal bengala se encontrava no seu estabelecimento. Mas o dono do Hotel Carranca, se não gostava de ficar com coisas do alheio, também não era muito dado a que lhe fossem ao bolso. Por esse motivo, se o anúncio sinalizava…
"BENGALA — Está depositada no Hotel Carranca, que o proprietario d'esta casa entregarà a quem provar pertencer-lhe"
… logo se seguia uma clara advertência: "…obrigando-se o dono da referida bengala a pagar a importancia d'este annuncio".

Seleccionei este saboroso exemplo para lembrar a importância de folhearmos os jornais de antanho. Até nos espaços publicitários podemos encontrar matéria que justifique reflexão, fundamentalmente que nos dê a conhecer costumes, tradições, modos de vida dos nossos antepassados próximos.
As ciências, exactas ou humanas, sofrem modas, todos o sabemos. Os comandos marxistas da fabricação da História levaram os historiadores a preocupar-se, e ainda bem, com os grandes ciclos da vida da humanidade. Baniu-se a bolorenta história cronológica, excomungou-se o quotidiano. Mas por pouco tempo. A corrente dos Annales haveria de colocar o dia a dia das gentes no pódium da investigação histórica e sociológica.
Hoje a ninguém escandaliza que o investigador se debruce apenas sobre a publicidade inserta nos jornais, que se produza tese sobre os mailings que todos os dias nos visitam nas caixas do correio, que se estude o fascínio dos estrangeirismos apenas e tão só pela sua penetração no reduzido espaço titular da imprensa.
Caminho aberto então ao pormenor, ao "ordinário" no sentido de vulgar, comum, do dia a dia.

O pormenor remete-nos a outro anúncio, também no "Commercio da Louzã". Instaladas que foram as grandes superfícies em Coimbra, há poucos anos atrás, logo houve quem tivesse temido, na Lousã e não só, pelo futuro dos seus negócios de venda a retalho. Apreensões legítimas, que todos julgariam fruto de um final de século com lógica importada de privilégio aos grandes empresários, aos capitães da indústria transformados em generais do comércio, para mal dos pecados do sr. Baptista ou do sr. Januário, que mais não conseguiram que abrir uma pequena mercearia na terra que os viu nascer.

Mas ainda o eng. Belmiro de Azevedo não havia nascido, e já no "Commercio da Louzã" se publicavam anúncios que desencentivavam os leitores a deslocarem-se a Coimbra para ali fazerem as suas compras. "Fazemos os mesmos preços que em Coimbra", lembravam alguns.
…E nós a pensarmos que a sombra que Coimbra fazia junto das localidades em redor havia sido baptizada com nome de Makro ou Continente!

Serve tudo isto para vos dizer que vale a pena, como vale a pena folhear jornais velhos de cinco, seis, oito, nove décadas.
Para por ali descobrirmos, por exemplo, que a História se repete?

Pessoalmente, sempre fomos avessos ao fatalismo dos ditados populares. Não diremos hoje que a História se repete, mas concedam-nos que digamos que muitas estórias se repetem.
Por vezes, o pormenor escapa ao jornalista mais afoito. Acontece hoje como acontecia no início do século:
"Na quinta feira, ás 7 horas da manhã, passou nesta villa, em automovel, com direcção á estrada de Góes, El Rei D. Manuel.
Acompanhavam-no duas senhoras que não poderam ser reconhecidas pela velocidade com que o auto aqui passou!"
Um pormenor importante que Júlio Ribeiro dos Santos deixou escapar…

As estórias repetem-se também no que toca ao sistema educativo. O "Commercio da Louzã", que não se assumia como jornal republicano, mas que tinha republicanos a dirigi-lo, desde sempre se preocupou em fomentar a instrução popular. A luta contra o analfabetismo era ponto de honra do ideário republicano, até por contraponto a uma monarquia cujos adversários consideravam erigida sobre o pedestal da Ignorância.
Em tom de poderosa mordacidade, num dos números do jornal que aqui hoje nos traz, anunciava-se programa que tornasse a monarquia indemne aos efeitos "perniciosos" da instrução:
"Artigo 1º — Fazer leis aparatosas para atirar ás bochechas do mundo civilisado e mostrar que cá tambem se pesca da regedoria.
Artº 2º — Conservar ás espeluncas o nome de escolas, para que lá fora, quem ouvir fallar em taes nomes julgue que se trata de edeficios apropriados, embora, não passem de cubiculos infectos.
Artº 3º — Continuar a fingir que o ensino é obrigatorio.
Artº 4º — Obrigar os professores a abdicar dos seus direitos civicos e perseguir a proposito de tudo o que tem o arrojo de pôr gravata vermelha.
Artº 5º — Continuar a pagar aos professores primarios o sufficiente para morrerem de fome afim de que elles descoroçoem e abandonem tal modo de vida ficando-se depois a viver uma nova vida de felicidade paradisiaca".

Ignorância que ao tempo levava muito boa gente a atribuir como causa primeira de um terramoto que assolara o Ribatejo, a realização do congresso republicano em Setúbal.

As estórias repetem-se, porque não no acumular de empregos por parte de uns quantos, sempre poucos?
O "Commercio da Louzã" publicou regularmente umas crónicas extraídas do jornal "Folha de Santa Clara". Intitulavam-se tais crónicas "Serões do Povo — À Lareira".
Numa delas, o "sr. Antonio", postado junto à sua pedagógica lareira, ensinava o povo, povo aqui com os nomes de Francisco Caseiro, João da Rosa, Joaquim da Peneda:
"Ó sr. Antonio, começou o Francisco Caseiro, tenho ouvido dizer que ha lá por Lisboa menino que tem dois tres e mais empregos, que de todos ganha e que a maior parte das vezes não faz nada! Será verdade?
— É verdade e mais que verdade, respondeu o sr. Antonio. Disse vocemecê, sr. Francisco, dois e tres empregos. ha menino que abicha cinco e seis! Olhe não vamos mais longe: o ministro do reino, que agora está no Poder, tem a bagatella de seis empregos e ainda anda para apanhar mais um.
— Ena pai, exclamou o Joaquim da Peneda.
— Então, disse o sr. João da Rosa, se tem seis empregos é para cada dia da semana seu, e pelo visto ainda quer outro para domingo (…)".

As estórias repetem-se, também no que à reportagem do mais próximo toca. Há um ditado brasileiro que nos ensina a não cobiçarmos a mulher do próximo, quando o próximo estiver próximo!
Ao jornalista, o próximo reportado só fica bem se bem disser. Que se aproxime para criticar, e malsinado será. Acontece hoje, aconteceu bastas vezes a JRS. Num dos seus artigos, denunciava com vigor amargurado intrigas de que era alvo:
"Existe aqui, como aliàs em todos os pequenos burgos, uma corte que estupidamente se compraz em malsinar, estropiar e confundir ideias, factos e pessoas, quando porventura divirjam ou discordem daquillo que em seus atrophiados bestuntos permanece, inoculado e inspirado nos felizes momentos de attenção que os seus mentores lhe dispensam".
"É ver como essa tropa estraga e inutilisa iniciativas, deturpa intenções, ocasiona o estacionamento e até mesmo o retrocesso de tudo o que não seja da sua lavra, que se caracterisa por tresandar a bolorento e archaico"
Mas as dificuldades de reportar o próximo não lhe tolhiam as forças:
"Como porem a Patria se não encerra no limitado horisonte da terra em que nascemos, como a humanidade não é apenas constituida pelos vizinhos do burgo ou da cidade em que habitamos, assim a actividade dos homens se não restringe no meio onde vivem ou hajam de viver.
A Patria e a Humanidade vão tão longe que bem podemos dizer não conhecerem fronteiras. E a actividade humana pode exercer-se em longinqua esphera d'acção".

Júlio Ribeiro dos Santos não desistiu, apesar das adversidades se adivinharem tamanhas. Continuou a lutar por um ideal, que José Tengarrinha define como de "extrema-esquerda liberal", que outros considerarão fermentado de socialismo: defesa dos pobres e oprimidos, lugar de honra à instrução popular, defesa do municipalismo, luta feroz ao caciquismo que ao tempo campeava, com raízes tão profundas que ainda hoje fazem brotar imitações tão prosaicas como folclóricas e risíveis.
O "Commercio da Louzã" tomava, de peito feito, o partido dos pobres:
"Mais um pouco de amor pelos pobresinhos, senhores padeiros, que elles nem sempre teem os estomagos dispostos a ingerir pão de milho!"
Os cantinhos de poesia eram tudo menos inócuos:

"Ha muito quem faça mal,
N'estes reinos mal fadados.
E que até por signal,
Ficamos todos logrados
Com certas coisas e tal
Bem levados dos diabos.

Tiram varias garantias,
Ao povo trabalhador
Que soffre todos os dias,
Da malandrice, o horror
Por causa das borguezias
Que passa muito doutor.

Eu acho bem entendido
No meu fraco entender;
Que um mortal nascido,
Tem direito a viver.
Sem que seja, opprimido,
Como está acontecer.

Só os ricos a meu ver
Têm direito ao mundo,
E o pobre ha-de viver,
Mais opprimido, no fundo,
E a um canto morrer,
Como qualquer vagabundo.

Pobres que, ao tempo, acompanhavam funerais à cata de uma esmola:
"O seu enterro, que se realisou no dia 12 pelas 5 e meia horas da tarde foi muito concorrido, o que bem attesta a grande sympathia de que gosava.
Acompanhava o feretro, alem da Irmandade do S. S.mo. e da Philarmonica Fraternidade Poiarense, — que exhibiu algumas sentidas e commoventes marchas fúnebres durante o trajecto, — um grande numero de amigos e parentes do finado, de Foz d'Arouce, Louzã e Poiares.
Na rectaguarda do prestito seguia um grande numero de pobres a quem foi distribuida uma esmola".

Numa coisa as estórias se não repetem. No excerto em que Júlio Ribeiro dos Santos escancarava mágoas pela incompreensão de alguns, notámos um registo de escrita bem mais vernáculo, bem mais directo do que os registos hodiernos.
Zéphiro, correspondente de Miranda do Corvo, olhava as eleições na sua terra, também em português que não pedia licença ao politicamente correcto, até porque o pc ainda não havia sido inventado:
"Vae por cá muito renhida a lucta eleitoral andando no meio della um pobre comido que não chega a ser descomido. Delle fallaremos.
O que pedimos sinceramente aos eleitores do nosso concelho é que continuem a deixar-se enganar com promessas e que não tirem a albarda de cima do lombo.
Ah! povo, povo, porque não has de tu ter juizo e vêr?!
Pága, pága — e não bufes. Tens a fortuna na mão e não a enxergas!"

Noutra ocasião, tratava-se a política de lá pelas Lisboas…
O sr. Teixeira de Souza organisou ministerio, e a estas horas já os leitores sabem pela imprensa diaria qual o elenco da companhia que s. exª formou para ir evolucionar na pista governamental".
De um ministério com dotes circenses, para um rei a quem a actividade intelectual causaria indigestões…
"O rei pensou e tornou a pensar, e, para não morrer n'aquelle genero de occupação, o que seria um descredito grave para sua magestade, deliberou-se a chamar o sr. Teixeira de Souza, como sendo a reserva ultima a que era forçoso recorrer no extremo das circunstancias".

Registos de um jornalismo que assumia uma causa, e a assumia de forma directa, sem as papas das línguas de hoje, ao serviço do Todo-Poderoso Consenso. A passagem do século e do milénio arriscam-se a estilhaçar a tradição. Em vez da catástrofe, a calmaria; ao calor da ideologia que divide sobrepuseram-se as águas mornas e insípidas do consenso que detesta fronteiras, à boa moda de Schengen.
Em vez da ruptura, se necessário for por uma boa causa, o consenso, a linguagem consensual e cloroformizada das nets, o políticamente correcto.
Hoje não se toleraria o episódio que o "Commercio da Louzã" reportava deliciado aos leitores: o caso do deputado enjoado com as voltas do rotativismo, que um belo dia resolveu entrar no plenário munido de uma pá de cortar bifes, pá que estraçalhou de tanto com ela bater na bancada…
Hoje o politicamente correcto proíbe-nos que o lobo da história infantil seja mau; aos fumadores espera-os a cadeira eléctrica; a cerveja deve beber-se sem álcool, e até o vinho, Deus meu, há dias nos era dado a provar num café de um centro comercial de Coimbra. Promovia-se ali vinho… sem álcool
O lobo já sabemos que passou a Lobo-Bom, o Capuchinho Vermelho esse ainda não foi obrigado a mudar de roupa. Não tardará que um qualquer movimento dos verdes ou dos amarelos proteste e o Capuchinho passará então a arco-íris ou, pior, a incolor…
Sorte a nossa Pinto da Costa não ter abraçado esta cruzada. Com as letras infantis marcadas no seu imaginário por um Capuchinho Vermelho, tendo o nosso património literário um Cesário Verde, se o Presidente do Porto alinha pela justiça das cores, ai Camilo, que passarás a Camilo Castelo Azul e Branco…


Júlio Ribeiro dos Santos foi a alma da Tipografia Lousanense, até à sua morte, em 1927. Fundou e dirigiu durante largos anos os jornal "Commercio da Louzã" e "O Futuro". Foi vogal e presidente da Comissão Administrativa da Câmara da Lousã. Foi juiz de paz, foi membro do Partido Republicano.
Acreditou na chegada da "Luz", aqui significando a implantação da República, terçou canetas e chumbo por mor de uma Ideia. Não foi correcto aos olhos dos terratenentes do burgo lousanense, sofreu pressões mas nunca vergou.
Assim como Jorge de Sena haveria de escrever um dia "Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade", assim Júlio Ribeiro dos Santos escreveu e acreditou que "Os homens desapparecem mas a Ideia não morre. Travada a lucta entre a reacção e a liberdade, entre as trevas e a luz, não ha duvidas sobre quem colherá os louros da victoria".
Porque, como diria Torga em 1949 "deve ser bom escrever em plena liberdade, como é bom colher um fruto da própria árvore e mastigá-lo".

A Tipografia da Lousã, que pariu centenas de jornais com o cunho de JRS, continuou depois da morte deste a viver histórias curiosas, da liberdade e da mordaça que haveria de durar 48 anos.
Livros de Florbela Espanca apreendidos pela polícia; ponto de encontro do Dr. Pires de Carvalho com Júlio Ribeiro dos Santos, aquele em vésperas de ser preso solicitando recato seguro, e Ribeiro dos Santos recambiando-o para Seia, para casa de um jovem que o director do "Commercio da Louzã" havia ajudado a livrar da tropa.
Tipografia que continuou a imprimir os Acórdãos da Relação, do Dr. Albano Cunha, mesmo durante o tempo em que este esteve enclausurado no forte de Peniche. As provas eram enviadas para a cadeia, onde Albano Cunha tratava das emendas, para posterior impressão.
Tipografia visitada pela PIDE, por vários agentes e também por um de nome Pereira. Alguns meses passados do 25 de Abril, Pereira voltou a entrar na casa tão sua conhecida. A PIDE já fora extinta, o Pereira era agora vendedor de material tipográfico…

O livro que nos traz aqui hoje é um livro sobre um jornal, sobre 62 edições publicadas num período fervilhante da história de Portugal.
Um livro que servirá como um pequeníssimo contributo para que a história da Lousã não morra nas prateleiras. Um livro como um pretexto, um acicate a que os lousanenses visitem mais vezes esta casa, a Biblioteca Municipal da Lousã, onde há milhares de jornais sedentos de olhares que tardam em chegar.
Na Lousã como noutras terras, há muita história e muitas estórias por contar. Do que vamos acompanhando, o concelho tem actividade cultural de alguma monta, se com outros comparado. Tem autarcas dispostos a colaborar em iniciativas culturais, como é o caso. Mas deixem-me aqui fazer um pedido, aos autarcas, não da Lousã, Góis ou Miranda, mas aos autarcas deste país. Somem lá o número de funcionários dedicados às engenharias, aos projectos, às actividades burocráticas. Coloquem o número numa coluna. Somem depois os funcionários dinamizadores de actividades culturais. Coloquem o total noutra coluna. Se o desiquilíbrio for de 50 para 1, tentem pelo menos diminuir a diferença de 49 para 47 ou 45, se não for pedir muito.
É que há muito a fazer, muito a recuperar da história de um povo que, não tenham dúvidas, morrerá sepultada em arquivos, espólios particulares, sótãos de ministérios e demais organismos estatais.

O Livro "Commercio da Louzã — 500 dias até à República" quis-se apenas um mínimo contributo para que a história do povo da Lousã se vivifique aos olhos dos mais jovens, e de todos os curiosos das coisas da cultura, porque a curiosidade nunca há-de ter barbas brancas.

Termino agradecendo ao Sr. Presidente da Câmara, Prof. Horácio Antunes, o apoio prestado na edição deste livro. Muito obrigado, e fique descansado que voltaremos a bater-lhe à porta mais vezes.
Agradecer a boa vontade do Director da Biblioteca Municipal da Lousã na cedência do material necessário ao livro. Muito obrigado, Dr. Matos Silva. Fique descansado, que voltaremos a bater-lhe à porta mais vezes.
Um agradecimento muito especial ao Director da EPL, Dr. Mário Ruivo, que acreditou nas virtualidades do Projecto Lousã em Datas, como tem acreditado noutro projecto que dá pelo nome de ensino profissional e tem rosto na EPL.
O meu obrigado aos técnicos da Tipografia da Lousã, gente quasi sempre esquecida nestas coisas de editar livros, apesar de serem eles os seus parteiros. Obrigado sr. Ferreira, sr. Armindo, sr. Simões, sr. Polaco, sr. Carlos, sr. Carvalhinho, sr. Duarte.

Sr. Dr. Fernando Vale. Tem V. Exa. a idade do século, 96 anos que valem ouro pela sua caminhada em defesa da Liberdade. Por sempre ter acreditado ser esta — a Liberdade — o terreno fértil por onde os pobres tentam ser menos pobres, a justiça mais justa, a educação mais igualitária, os privilégios menos sentidos.
Agradeço-lhe, em meu nome pessoal e em nome de todos os que constroem dia a dia a EPL, a suprema honra que a todos nos deu quando aceitou presidir a esta singela cerimónia.
A homenagem que hoje prestamos a Júlio Ribeiro dos Santos também a si lha prestamos. Porque nunca será demais exortarmos o sagrado valor da Liberdade, tão bem definida nas páginas do "Commercio da Louzã" como a "noiva eterna das almas juvenis, o ideal sublime por que combatem todos".

sábado, 13 de fevereiro de 2010

"Commercio da Louzã" - A República na ponta da caneta

Reproduzimos artigo publicado no quinzenário "Jornal da Lousã",anunciando o lançamento do livro.

MAS PODERÁ A IDEIA SER FUZILADA
OU ENCERRADA NUMA PRISÃO?

"Commercio da Louzã"
A República na ponta da caneta

No próximo dia 5 de Outubro, pelas 11h 30, proceder-se-á à cerimónia pública de apresentação do livro "Commercio da Louzã — 500 dias até à República", uma edição da Escola Profissional da Lousã. Dos objectivos desta obra — que integra o Projecto "Lousã em Datas" e tem o apoio da Câmara Municipal da Lousã, Biblioteca Municipal da Lousã e Delegação do Centro da Secretaria de Estado da Cultura —, já démos conta na edição anterior.
Deixamo-vos hoje alguns excertos do livro da autoria de Dinis Manuel Alves, jornalista e professor da EPL.
O livro está polvilhado de reproduções do "Commercio da Louzã", um convite a uma leitura mais alargada deste jornal, que poderá ser feita por todos na Biblioteca Municipal. Ali se encontram, aliás, colecções de outros periódicos lousanenses que justificarão o interesse dos leitores, para melhor conhecerem factos e costumes dos tempos de antanho do nosso concelho.

CACIQUES — "Lá estivemos no domingo a apreciar alguns bocaditos da legalidade com que são feitas as eleições cá pelo burgo.
A meza foi constituida ás 9 horas e 15 minutos; sendo lido pelos diversos influentes monarchicos os alfarrabios que deviam regular o acto eleitoral, accordaram em serem distribuidos á bocca da urna, as listas aos eleitores, que as recebiam fechadas e, sem verem o que continham, as passavam á mão do presidente que as lançava d'entro da urna, que havia de acusar o resultado final da eleição.
De maneira que os chefes, rodeados de grande quantidade de janizaros, lá estavam na faina do costume, de dizer aos eleitores:— este é meu, este é meu; e depois do eleitor resolver de quem era, lá recebia a lista na mão direita e na esquerda a senhasinha para o bacalhau albardado e respectiva murrassa com que regar o dito".

COMETA — A astronomia desta feita chamada a página para explicar ao António Russo, ao João do Oiteiro, ao Joaquim Coxo, leia-se ao "zé povo", que a passagem próxima de um cometa não significaria o fim do mundo. No final da charla, Manuel Caseiro pôde ir dormir mais descansado:
"Olhe, sr. Antonio, fez bem em nos fallar assim, porque nós, eu cá por mim pelo menos, embora não quizesse lá muito crer nisso, em todo o caso andava ainda assim com o meu cagasso…"

FESTA — As melhores famílias da terra esqueceram, na passagem do ano, as turbações da política lusa, e cumpriram animado réveillon:
"Soiree — Como noticiámos, teve logar na nova casa do Club Louzanense, na ultima noite do anno uma brilhante soiree em que se reuniram as principaes familias da Louzã.
Dizem-nos, que a principio o baile correu com animação, mas que depois da meia noite a maior parte dos cavalheiros sahiram da casa do baile para a sala de jogo do mesmo club.
No entanto, de domingo para a segunda, lá se tornou a realisar outro baile que durou até de manhã.
Que lhes preste".

FOME — "Em conclusão: A Fome com todo o seu cortejo lugubre de misérias já penetrou em muitos lares onde os abastados e felizões nem de leve põem a sua ideia. Mas não importa porque o egoismo feroz de que estão possuidos não lhes dá azo a pensarem nos seus irmãos famintos, para só pensarem nas suas respeitáveis barrigas sempre em constantes e difficeis funções digestivas".

INSTRUÇÃO — A 1 de Agosto, a "instrucção" na Lousã ficava bem classificada, fosse no sector das crianças, fosse no dos mais crescidos, agora despertos e com condições de aprender as letras que seus pais não puderam mandar que lhas ensinassem…
"Na segunda feira teve logar na escola Conde Ferreira desta villa a conclusão dos exames do 1º grau deste concelho, que decorreram da seguinte forma:
Felismina Serrano Correia, optima
Laura da Conceição Baeta Pires Serra, optima
Antonio Henriques dos Santos, optimo
Ignacio Antonio Lopes, optimo.
Ás duas meninas, que foram habilitadas pela professora particular a exma. srª D. Elisa Augusta de Sá os nossos parabens.
Aos srs. Antonio Henriques e Ignacio Lopes que, attendendo ao enorme sacrificio que fazem para aprender agora o que seus paes lhe não poderam mandar ensinar, as nossas sinceras felicitações.
Estes dois cavalheiros foram leccionados pelo sr. Francisco Pereira Correia de Seixas que, diga-se em abono da verdade, é o professor a quem a Instrução mais serviços deve na Louzã porque foi elle quem acabou aqui com o privilegio de só aos ricos ser permittido saber ler…"

Em tom de poderosa mordacidade, anunciava-se programa que tornasse a monarquia indemne aos efeitos "perniciosos" da instrução:
"Artigo 1º — Fazer leis aparatosas para atirar ás bochechas do mundo civilisado e mostrar que cá tambem se pesca da regedoria.
Artº 2º — Conservar ás espeluncas o nome de escolas, para que lá fora, quem ouvir fallar em taes nomes julgue que se trata de edeficios apropriados, embora, não passem de cubiculos infectos.
Artº 3º — Continuar a fingir que o ensino é obrigatorio.
Artº 4º — Obrigar os professores a abdicar dos seus direitos civicos e perseguir a proposito de tudo o que tem o arrojo de pôr gravata vermelha.
Artº 5º — Continuar a pagar aos professores primarios o sufficiente para morrerem de fome afim de que elles descoroçoem e abandonem tal modo de vida ficando-se depois a viver uma nova vida de felicidade paradisiaca".
Resumindo o pensamento do autor do artigo, assinado por "D.", a monarquia gostaria de ver os cemitérios pejados de mestres-escola!

INTRIGAS — A 30 de Julho de 1910, Júlio Ribeiro dos Santos denunciava com vigor amargurado intrigas de que era alvo:
"Existe aqui, como aliàs em todos os pequenos burgos, uma corte que estupidamente se compraz em malsinar, estropiar e confundir ideias, factos e pessoas, quando porventura divirjam ou discordem daquillo que em seus atrophiados bestuntos permanece, inoculado e inspirado nos felizes momentos de attenção que os seus mentores lhe dispensam".
"É ver como essa tropa estraga e inutilisa iniciativas, deturpa intenções, ocasiona o estacionamento e até mesmo o retrocesso de tudo o que não seja da sua lavra, que se caracterisa por tresandar a bolorento e archaico" — continuava Ribeiro dos Santos, triste por tais procedimentos de gente da terra amada, mas as fronteiras de um Homem não se limitavam já ao torrão que o vira nascer…

JORNAIS DEVOLVIDOS — Por mais imparcialidade tentada na descrição dos factos ocorridos a 11 de Julho, a verdade é que houve assinantes que reagiram mal. Alguns marcaram o seu protesto devolvendo o "Commercio da Louzã":
"Com a exposição que fizemos dos acontecimentos de 11 do corrente, foram-nos devolvidos 9 jornaes.
Achamos pouco, attendendo á má vontade com que foi recebido o nosso primeiro numero.
Para demonstrarmos o que ha de verdade a este respeito basta dizer se que apenas o escrivão do 1º officio nos tem dado para publicar os annuncios do seu cartorio".

O REI — A passagem do Rei D. Manuel pela Lousã não ocupava mais de sete linhas! O motivo de tal sovinice em texto explicava-se na própria notícia:
"Na quinta feira, ás 7 horas da manhã, passou nesta villa, em automovel, com direcção á estrada de Góes, El Rei D. Manuel.
Acompanhavam-no duas senhoras que não poderam ser reconhecidas pela velocidade com que o auto aqui passou!"

POBRES — "É do 'Louzanense' de 1905 o nosso primeiro artigo, que, pela sua doutrina e pelo pouco que se tem feito, do que reclama em favor do operario, nunca é demais repeti-lo e propaga-lo entre as camadas sociaes, até que alguma coisa se faça em favor d'aquelle que gasta a maior parte da sua existencia em proveito do abastado, que olha para elle, depois de gasto, como quem olha para uma machina, já sem concerto, que se atira para o monturo das coisas inuteis".

POLÍTICA — "Duas coisas me moveram a acceitar o vosso amavel convite de collaboração: a minha amizade por vós (…) e eu saber que o vosso jornal não tinha política, senhora com quem não tenho relações, mas que me parece pessoa detestavel, pelos males que lhe tenho visto causar e pelas patifarias e injustiças que lhe tenho visto praticar.
E então numa terra pequena?!
Ella mette-se em casa dos grandes, d'olho manhoso e sorriso matreiro, ouve o que os patrões dizem e vai contal-o aos criados; vai até á cosinha cheirar as panellas e provar os guizados, ouve os criados dizer mal dos patrões, ajuda-os nisso se fôr preciso e vai para a sala dizer tudo quanto ouviu, se é que não accrescenta alguma coisa da sua lavra (…)". João Ninguém

RELIGIÃO — Elogio ao pároco chamado a pregar o sermão à chegada de Nossa Senhora da Piedade. Um elogio que mostrava já, de forma clara, para que lado pendiam as simpatias do jornal lousanense:
"O sr. padre José Amaro, com o seu discurso fluente e correcto, historico-socialista, conseguiu, em parte, agradar immenso ao selecto auditorio. Os nossos parabens".

"Discurso sensacional — Um padre defendendo a Liberdade" — assim se chamava o apetite dos leitores para a primeira das prosas: "Desse discurso, que produziu magnifica impressão no auditorio, extrahimos os seguintes periodos que constituem uma soberba saudação á Liberdade — 'a noiva eterna das almas juvenis, o ideal sublime por que combatem todos'".
Vinha depois o discurso do pároco de Vila Secca, com direito a chamada igualmente panegírica:
"N'uma brilhante conferencia, ha dias realisada em Santarem, o sr. dr. Antonio Augusto, parocho de Villa Secca, diz que o catolicismo e democracia não são inimigos, antes o bom catholico deve auxiliar a propaganda republicana".

TACHOS — Da Lousã faltaria assunto político para tratar, daí o predomínio das crónicas, também dos artigos importados doutras publicações.
O "sr. Antonio" continuava postado junto à sua pedagógica lareira, ensinando o povo que assumia hoje os nomes de Francisco Caseiro, João da Rosa, Joaquim da Peneda:
"Ó sr. Antonio, começou o Francisco Caseiro, tenho ouvido dizer que ha lá por Lisboa menino que tem dois tres e mais empregos, que de todos ganha e que a maior parte das vezes não faz nada! Será verdade?
— É verdade e mais que verdade, respondeu o sr. Antonio. Disse vocemecê, sr. Francisco, dois e tres empregos. ha menino que abicha cinco e seis! Olhe não vamos mais longe: o ministro do reino, que agora está no Poder, tem a bagatella de seis empregos e ainda anda para apanhar mais um.
— Ena pai, exclamou o Joaquim da Peneda.
— Então, disse o sr. João da Rosa, se tem seis empregos é para cada dia da semana seu, e pelo visto ainda quer outro para domingo (…)".

TROPA PARA QUE TE QUERO — O recenseamento dos mancebos já se fizera, mas alguns preferiram não responder à chamada ao quartel:
"Na comarca da Louzã, cartorio do segundo officio correm editos de 60 dias, a contar do segundo annuncio, citando o mancebo refractario Manuel Ferreira, filho de António Ferreira e de Biatriz de Jesus, do logar do Freixo, para nos 10 dias subsequentes, pagar reis 225$000 como dispõe o artº 173 do decreto de 24 de Dezembro de 1901, ou nomear bens á penhora na execução que lhe move o Ministério Público".

TUMULTOS — O comício republicano de 11 de Julho de 1909 não haveria de decorrer na "ordem" desejada. Os sub-títulos da manchete da edição de 16 de Julho eram bem sinal disso mesmo:
"Chegada dos excursionistas — A contra-manifestação — Apedrejamento á casa do sr. Padilha onde se realisou o comicio e aos comboios que conduziam para Coimbra os excursionistas — Tiros — Arrombamento pela madrugada do dia seguinte 12 do corrente — Outras noticias".
"… Um desordenado berreiro de vivas á Monarchia, sendo a ultima palavra d'esta phrase, pronunciada pela maior parte d'essa pobre gente, sem a primeira syllaba, dando assim a ideia nitida da consciencia de quem levantava os vivas á Monarchia" — lia-se no jornal lousanense.
Aquando da primeira salva de palmas ao orador, "o nosso illustre conterraneo e talentoso advogado Dr. Fernandes Costa (…) de cá de fora apedrejavam as janellas, partindo muitos vidros, disparando-se alguns tiros de rewolver".

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Escola Profissional da Lousã edita livro

Reproduzimos artigo publicado no semanário "Jornal de Coimbra",anunciando o lançamento do livro.

ESCOLA PROFISSIONAL DA LOUSÃ EDITA LIVRO

"Commercio da Louzã — 500 dias até à República"

"O ano de 1909 entrara com ministério da presidência do regenerador Campos Henriques, o novo governo era recebido como de reacção ao avanço da onda republicana, como um ministério de defesa monárquica.
A 2 de Fevereiro realizara-se a assembleia do partido regenerador; a 10 de Fevereiro teve lugar, em Vila Viçosa, um encontro entre os reis de Portugal e de Espanha. O encontro haveria de levantar grande celeuma nos arraiais republicanos, alentando certas esperanças nalguns sectores monárquicos.
A nova sessão legislativa anunciou-se, logo de entrada, tumultuosa. Uma proposta de lei do ministro Espregueira, para um empréstimo de quatro mil contos foi combatida com a maior violência.
As oposições tentaram conseguir a constituição duma comissão parlamentar de inquérito. A maioria recusou-a. Rebentou o tumulto. Um deputado munido duma pá de bater bifes, foi despedaçando várias carteiras, enquanto os outros repetiam em grita: — Inquérito! Inquérito!
Campos Henriques demite-se, sendo substituído por Sebastião Teles, em ministério de duração fugaz, cumprindo apenas 27 dias de governação.
Estávamos a 11 de Abril de 1909, dia da publicação do segundo número do "Commercio da Louzã", jornal agora desfolhado pelo Projecto "LOUSÃ EM DATAS". Uma iniciativa da Escola Profissional da Lousã, traduzida no livro "Commercio da Louzã — 500 dias até à República", a apresentar publicamente no próximo sábado, dia 5 de Outubro, no Auditório da Biblioteca Municipal da Lousã.

UM JORNAL SEM POLÍTICA… EMPENHADO POLITICAMENTE

Ao lançar o seu programa aos mares da crítica, o "Commercio da Louzã" anunciava-se arredio de partidários e partidos — "um jornal sem política", como antevia o colaborador "João Ninguém".
Mas a política foi tema que sempre esteve presente no periódico lousanense, neste longo prólogo da República que acompanhou. No seu programa, o t'arrenego à política talvez quisesse significar ausência de comprometimento declarado a um determinado partido. Mas os textos desmentem que o jornal evitasse o empenhamento político, no caso em defesa do ideal republicano.
Não se renegava a política, mas a "má política" da qual chegavam constantes ecos da capital e doutras paragens, através de abundantes citações e reproduções integrais de prosas de outros jornais em Lisboa, Aveiro ou Coimbra publicados.

CRUZADA PELA CHEGADA BREVE DA "LUZ"

Não se assumia oficialmente como republicano, apesar das confessadas "ideias republicanas dos seus directores"; mas o "Commercio da Louzã" fez cruzada pela chegada breve da "LUZ", que aqui significava o advento da República, por troca com um regime decrépito, que levara Portugal à condição de um "leão moribundo".
Páginas desfraldadas a favor da instrução popular, da aprendizagem da leitura a desaguar no leito sofrido dos pobres a quem os herdeiros da sorte e da fortuna desprezavam; páginas impressas com o vigor de quem clamava contra as injustiças do caciquismo local, do clero reaccionário e dos "camaristas" lousanenses que pareciam saber apenas da sua vidinha tratar.
Pela instrução popular, significava tomar partido contra um trono que assentava "sobre um pedestal chamado Ignorância", contra uma "monarquia nova" que esclerosava de velhos problemas.
Contra o clero conservador, porque sustentáculo de um trono agora com face de um "jeune roi" pelo jornal considerado incompetente, entre outros variados mimos.
Contra a Rotina, a Intolerância e a Escravidão, porque o contraponto dava pelo nome de Liberdade, Razão e Justiça.
Querendo apurar dominâncias ideológicas pelo texto dos sessenta e poucos números cumpridos até ao dealbar da República, diremos que o "Commercio da Louzã" se fez no berço do ideário socialista, uma "extrema esquerda liberal" que José Tengarrinha encontrou nos jornais portugueses que não eram declaradamente órgãos de partidos.
Um jornal que lutava contra os poderosos também para se manter de pé, que de quando em vez lá surgiam as referências à devolução de vários exemplares, ou à má vontade de quem, podendo, negava a publicidade que em tempos sobejara para os antecessores periódicos publicados na terra, um "rotativo" e outro "franquista".

HOMENAGEM A JÚLIO RIBEIRO DOS SANTOS

O livro que a Escola Profissional da Lousã agora dá à estampa, da autoria de Dinis Manuel Alves, pretende-se homenagem aos jornalistas que fizeram o "Commercio da Louzã", e nomeadamente ao seu proprietário e director Júlio Ribeiro dos Santos.
Homenagem que se pretende de conteúdo útil, trazendo ao final do século páginas memoráveis de uma publicação do concelho da Lousã, quando o século mal despira as fraldas. Vale também como documento — pela reprodução de alguns dos textos publicados naquele periódico; como registo que interessa carregar até ao presente, como convite ao conhecimento, por parte das gerações mais jovens, de uma experiência de jornalismo assaz diferente da que se vive hodiernamente.
Valerá ainda como convite à leitura dos jornais de antanho, fascinantes mananciais de relatos e registos narrativos de um jornalismo que assumia uma causa. A República como pretexto para uma evocação, porque nunca será demais exortar-se o sagrado valor da Liberdade, tão bem definida nas páginas do "Commercio da Louzã" como "a noiva eterna das almas juvenis, o ideal sublime por que combatem todos".
A Câmara Municipal da Lousã associa-se a esta homenagem, atribuindo o nome de Júlio Ribeiro dos Santos a uma das ruas daquela simpática vila.
De referir, por último, que o Projecto "Lousã em Datas" conta com o apoio daquela autarquia, da Biblioteca Municipal da Lousã e da Delegação do Centro da Secretaria de Estado da Cultura."